sábado, 30 de outubro de 2010

Feliz é o homem que aprende a conviver com seus próprios demônios

“Hoje eu acordei com medo, mas não chorei nem reclamei abrigo; do escuro eu via o infinito sem presente, passado ou futuro...”
(Cazuza)
 
     Não consigo dormir, sinto-me Gregor Samsa despertando de sonhos intranqüilos; duas e meia da manhã e as sombras invadem meu quarto, o cheiro do litoral me trás a lembrança de que a lua em algum lugar ainda brilha. A luz do computador corta as trevas em um chiaroscuro agourante, antes escuridão total do que um reles raio de claridade para se prender.
     Estou sufocando, cada célula minha agoniza; como cheguei a esse ponto? Contar-te-ei a estória de um amaldiçoado, minha estória. Vivi meu maior amor neste ano que está para terminar. Vivi ou amei? O amor engana os sentidos, engana a alma. A intenção seria escrever sobre como amei, mas não consigo, estou louco. Como um doente, como um verme poderia escrever acerca de qualquer sentimento bom? Quero explorar a tristeza, quero explorar a morte, exploro o obscuro, o que a noite e a tristeza podem me trazer.
     Meus olhos nada vêem, eles nem querem. A única imagem: o computador e minhas mãos dançando freneticamente sobre o teclado; enquanto tudo ao meu redor são trevas, nada existe, estou imerso na escuridão. Sinto milhares de silhuetas no escuro da noite, demônios de todas as idades e intensidades, demônios de todos nós, assombrando e explorando cada fraqueza humana. Vejo-os todos.
     Minha boca está seca; nada restou de palavras a serem pronunciadas, nada restou de coragem para argumentar, nada restou. A verdade é que restou sim, tanta coisa! Mas nesta noite senti o gosto do insosso, e me apeteceu tanto que assim o quero. Para quê o prazer do paladar? Procuraria em qualquer alimento o gosto do corpo de minha paixão. Minhas narinas se alienaram; por todo lugar sentem o odor daquela criatura, lembram o cheiro de cada pedaço daquela carne; minha cama conserva exatamente o aroma que brotava do encontro de nossa pele. 
     Todo o meu tato está órfão, meus membros estão órfãos. Foram-se os momentos em que meus braços envolviam e protegiam; ainda sinto aquela cabeça encostada em meu peito, ainda posso sentir nossos pés entrelaçados por baixo dos lençóis. Estou aleijado, uma parte de mim falta, amputou-se. Estou também surdo, perdi minha audição há muito tempo, quando decidi que não daria mais ouvidos aos demônios, mas eles encontraram outros meios, eles estão aqui comigo agora.
     Minhas mãos, quando deveriam estar relaxadas, não se relaxam; entram em uma tremedeira sutil e imperceptível, porém rítmica e constante. Meu coração decidiu acelerar freneticamente enquanto um punho invisível o segurou e apertou para não libertar mais. Da boca de meu estômago surge uma agonia doentia, como se o tivessem dilacerado minhas vísceras e ali mesmo deixado as facas para que as feridas não cicatrizassem.
     É de lá que brotam os demônios, pensei que fosse da minha mente, mas não é; é do meu estômago. Do mesmo lugar que os seus surgem na calada da noite. Estou sendo sufocado pela criatura; desde o começo desse texto estava a pensar que quisesse me matar, pura ingenuidade, ela se alimenta de mim. Amanhã estarei vivo para olhar, degustar, cheirar, tocar e ouvir; resta saber quando outra vez imaculadamente.
 

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